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sábado, novembro 05, 2005

Puxando pela memória(3)

POBRE CLASSE MÉDIA

Drª Maria Lucia Victor Barbosa
14/07/2003

Ao longo da vida coisas boas e ruins acontecem, marcando períodos, gravando na memória fatos agradáveis ou tristes, enquanto a existência vai passando por esse "vale de lágrimas". Mas por algum mecanismo de sobrevivência, que busca no consolo das boas recordações forças para continuarmos em frente, tendemos a pensar com certo saudosismo sobre o que valeu à pena em nossa infância e adolescência.
Voltando ao tempo dos meus seis ou sete anos, recordo-me de minha mãe. Olhos atentos no bordado, espécie de arte e distração, ela costumava me dizer quando lhe pedia um brinquedo excessivamente caro, como o cavalinho branco de rodinhas que adoraria montar: "Esse não, minha filha, somos pobres remediados. Peça outra coisa". Eu emburrava, mas quando chegava o Natal, farto de mesa, generoso com os parentes, eram tantos presentes multiplicado em jogos, bonecas, roupinhas encantadoras, que uma espécie de magia ficou guardada comigo para sempre, marcando aquela época de pobre remediado, ou seja, de classe média.
Em minhas reminiscências vejo também minha mãe sempre bem vestida, caprichosamente penteada, ostentando algumas jóias presenteadas por meu pai. Inclusive, saía com elas, sem a menor preocupação com assaltos. Íamos felizes, subindo e descendo ladeiras em Belo Horizonte rumo ao imponente casarão de meu avô.
Já os realmente pobres, não sei se por conta de minha ótica infantil, pareciam mais dignos, como a lavadeira Maria e sua filha Elza. Elas possuíam uma elegante compostura, uma doce amenidade que passavam longe da "luta de classes". Elza tornou-se minha melhor amiga em tardes de brincadeiras regadas a lanches com rosquinha de milho e café com leite, que repartíamos igualmente em nossa festa diária enfeitada de risos e alegrias.E não se pense que quando meus primos, uns mais, outros menos, pobres remediados, iam brincar comigo, Elza fosse discriminada. Nada disso. A menina negra tinha os mesmos direitos aos brinquedos que nós, lourinhos de olhos azuis, netos de alemães. E assim preenchíamos o dia que parecia longo e estimulante.
Hoje os pobres remediados estão cada vez mais sofridos, mais penalizados. Vive-se num Brasil violento, padece-se o desemprego que corrói a dignidade e o esforço baseado na educação é muitas vezes inútil. Além do mais, sobre os pobres remediados recai a fúria tributária, pois nem ricos nem pobres pagam impostos. Cabe também á classe média ajudar os pobres através de programa sociais que não funcionam, de trabalho voluntário, de doações que não se sabe onde vão parar. E como os pobres remediados constituem a base de consumidores da grande indústria, do comércio de grifes, tornam os ricos mais ricos.
Na hora do voto, se a maioria constituída pela pobreza elege do vereador ao presidente da República, na classe média estão os formadores de opinião capazes de influenciar as camadas menos favorecidas. Entretanto, pobres remediados são românticos ou otários suficiente para acreditarem em ideologias ultrapassadas, para se iludirem com propagandas mentirosas, para cultuar falsos messias, para serem os mentores das revoluções perniciosas.
Assim, nada como a classe média para sustentar governos incompetentes e perdulários, que tripudiam sobre o povo que agradece, reverencia e se submete.
Nesse momento os pobres remediados estão tendo o que mereceram por contra de sua incapacidade inata de gostar do que não presta, de amar a mediocridade, de sucumbir nas armadilhas da ilusão. E na atual situação, em que o País vai piorando e deteriorando rapidamente, nem remediada a classe média está mais. Resta recordar tempos idos. Neles era possível crer no Brasil como o país do futuro, inclusive dos pobres remediados.

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